De que é que têm medo e de que é que temos medo? João Rodrigues

Chaves_do_mesEm A Bandeira Vermelha, uma história do comunismo, David Priestland, indica que as «desigualdades económicas profundas» são apenas uma das condições necessárias para a transformação de um espectro em realidade política. Foram igualmente indispensáveis «impérios e hierarquias profundamente entrincheirados». Priestland chama igualmente a atenção dos poderes actuais para a necessidade de aprenderem com esta história e de abandonarem liberalismos «dogmáticos e messiânicos»; só assim «poderemos ser poupados a mais um ato sangrento da tragédia de Prometeu», conclui [1].

Quase vinte anos antes, Eric Hobsbawm tinha analisado a história do «breve século XX» e vincado o poderoso incentivo que o comunismo paradoxalmente forneceu para a reforma e, portanto, para a durabilidade do capitalismo. A crise da tradição política comunista, parte de uma crise mais vasta dos vários socialismos, estaria fornecendo ao neoliberalismo uma confiança desmedida, manifestada, por exemplo, na narrativa do fim da história, com um potencial profundamente destrutivo [2].

No fundo, o capitalismo sempre requereu freios e contrapesos reais, alternativas que o desafiassem e impusessem mudanças nas suas formas, e hoje estas alternativas estão ainda profundamente enfraquecidas. Na Europa, em particular, uma das razões para este estado de coisas, de resto articulada na sua origem com essa crise dos socialismos, foi a consumada inscrição do capitalismo neoliberal nas estruturas da integração europeia, culminando na criação da União Económica e Monetária (UEM) precisamente a partir do final da década de oitenta. Hoje, vemos por essa Europa fora as tais desigualdades económicas cada vez mais profundas, combinadas precisamente com uma hierarquia crescentemente imperial e aparentemente bem entrincheirada, com os seus postos de comando em Berlim, Frankfurt e Bruxelas e com novas tecnologias de controlo político: do euro à dívida que não é soberana porque os países mais fracos endividaram-se numa moeda sobre a qual não têm controlo político através do seu Banco Central.

Perante isto, o que faz a esquerda, em particular no nosso país?


Faz variadas coisas, claro, mas talvez seja de começar a responder com uma pergunta: o que seria hoje da esquerda ainda dominante no campo intelectual e político, da esquerda razoável, sensata e europeísta, a que também por aqui costuma invocar Kant e Habermas, se não fossem as franjas ditas radicais e eurocépticas? Esta pergunta pode parecer deslocada, mas ainda assim coloco-a porque tenho reparado que a tal esquerda, e nisto não está sozinha, invoca estas franjas cada vez mais, qual espectro simultaneamente ameaçador e atractivo, para tentar chamar quem manda à razão; a uma razão social e historicamente descontextualizada, que teria sido perdida algures num processo de integração já sem as sábias e desinteressadas elites de uma tradição europeia inventada.

O idealismo é o outro nome desta esquerda que foge da realidade do conflito social e nacional, duas faces da mesma moeda nas periferias europeias, que foge das alternativas que nem por isso desaparecem no presente contexto, como não desapareceram em anteriores: capitulação perante os imperialismos iníquos ou aposta na libertação nacional e social, sempre acompanhada, claro, do contágio e do internacionalismo que a possam apoiar. Historicamente, a luta de classes, como sublinhou recentemente Domenico Losurdo, sempre se declinou no plural, lutas de classes. E estas tiveram, no plano internacional, a luta pela libertação das nações oprimidas como uma das suas componentes vitais [3].

Na realidade, hoje em dia, é como se a esquerda europeia dominante delegasse nas tais franjas as tarefas intelectuais e políticas necessárias e de que abdicou, substituindo a grelha das lutas de classes por uma actividade intelectual e política que consiste em vislumbrar sinais de sensatez nas elites do poder, a esperar por esse momento de razoabilidade e a contribuir enquanto espera para uma inflação de analogias históricas deslocadas, em suporte de programas reveladores da extensão do recuo: do New Deal ao Plano Marshall, mas agora europeus, verdes e destinados prioritariamente ao martirizado Sul da Europa. Seria isto ou as franjas. E seria isto porque as elites não querem as franjas, claro. Tudo tendo como referente as franjas, repare-se.

Note-se desde já que estas analogias começam por ser deslocadas porque o New Deal foi implementado, a partir de 1933, mobilizando os instrumentos de política económica de um Estado capitalista realmente existente e a União Europeia não é um Estado e não o será, sendo que os elementos de soberania que capturou estão desenhados para impedir políticas de recorte keynesiano; o Plano Marshall, por sua vez, foi um momento de internacionalização do Estado norte-americano do New Deal, num contexto em que o espectro do comunismo era precisamente uma realidade bem concreta, dos fortíssimos Partidos Comunistas Francês e Italiano aos tanques soviéticos em Berlim, passando pelas guerrilhas comunistas gregas, realidades sem equivalentes contemporâneos, claro. Não por acaso, o agora tão invocado perdão de parte substancial da dívida à República Federal Alemã, na década de cinquenta, foi uma das suas componentes vitais.

Mais uma vez a pergunta surge: qual é o mecanismo político que garantiria hoje resultados equivalentes? Na ausência de alternativas «ameaçadoras», será a razoabilidade das elites do poder a fazer o trabalho? Para desgraça desta esquerda, quem manda não está louco e não é irracional, o contraponto explicativo do fracasso deste programa político. Pelo contrário, quem manda sabe bem qual é a correlação de forças, conhece a história que obrigou a concessões em períodos anteriores, conhece a natureza das instituições que forjou, sabe o lado que ocupa nos conflitos activa e deliberadamente promovidos, sabe fazer de polícia bom e de polícia mau, sabe coagir e cooptar, sabe exercer a hegemonia, ou seja, sabe fazer com que os adversários passem a vida a responder às suas questões, com respostas cada vez mais próximas dos termos por si definidos.

E quem manda sabe também que tem condições estruturais, do Banco Central Europeu ao mercado interno, para continuar a ganhar na Europa, sabe bem que as tais franjas ainda são fracas politicamente, embora isto possa vir a mudar, sendo que essa mudança depende da capacidade de reconstruir alternativas reais de confrontação aberta a partir da fusão da questão nacional com a social. Mas, sobretudo, quem manda sabe que ainda potencialmente mais fraca do ponto de vista político do que as franjas é a tal esquerda que tenta persuadi-los e persuadir-nos da viabilidade de uma solução que no presente contexto histórico sairia essencialmente de uma deliberação racional entre bons europeístas, o que nunca aconteceu, claro. Seja como for, os bons europeístas são os que nos querem convencer de que esta União Económica e Monetária, com uma marca imperial e de classe cada vez mais indisfarçável, e por isso cada vez mais prenhe de lutas de classes, ainda seria a melhor hipótese de progresso para uma nação hoje oprimida como a nossa, com a história da nossa no euro.

Derrota só pode ser o outro nome da esquerda que continua a apostar tudo numa escala ainda há alguns anos inexistente, a do euro, onde hoje só estão problemas para os povos. Derrota tem sido o outro nome da esquerda. Uma formulação da autoria do já incontornável Ambrose Evans-Pritchard resume uma explicação essencial para derrotas passadas e futuras: «podes defender as políticas da UEM ou a tua base eleitoral, mas não podes defender as duas ao mesmo tempo»[4].

A esquerda dominante faria bem em meditar nisto, já que a impotência social-democrata europeia radica muito mais no actual enquadramento europeu do que nas pessoas que ocupam cargos de direcção nos partidos. Há aqui uma analogia histórica que, ao contrário das que são constantemente invocadas, pode não ser assim tão deslocada: a igualmente impotente posição de grande parte da social-democracia europeia nos anos vinte e nos primeiros anos da Depressão, a partir de 1929, perante um sistema monetário com o qual o euro se assemelha perigosamente – o padrão-ouro – e perante a austeridade que este impunha enquanto durou. A questão para a qual essa analogia também remete é a de saber que franjas se tornarão dominantes em muitos contextos nacionais[5]. As franjas de direita parecem perigosamente estar a ter a capacidade, em alguns países, de representar as classes populares abandonadas pela esquerda.

De resto, a impotência social-democrata pode vir a afectar hoje e ainda mais os que saíram, ou contam vir a sair, das franjas para o centro do poder, contestando a austeridade, mas tendo por base a narrativa fantasiosa de um potencial euro bom.

Chegamos então ao maior paradoxo da história da esquerda europeísta, a que aderiu ao «internacionalismo monetário», de que José Mário Branco falava com ironia inadvertidamente profética no seu FMI: tendencialmente, os partidos social-democratas, os ainda mais importantes à esquerda, tornaram-se resolutamente europeístas na fase de vigorosa arrancada neoliberal da integração nos anos oitenta, tendo tido fortes inclinações eurocépticas na fase, até aos anos setenta, em que a integração neoliberal pelos mercados construídos era menos vigorosa. De facto, qual é o equivalente hoje em dia do diagnóstico de Olof Palme, a Norte, sobre os quatro «C» da CEE – «conservadora, capitalista, clerical e colonialista» – ou do de Andreas Papandreou, a Sul – «a CEE é o mecanismo de consolidação da dominação do capitalismo americano-alemão na Europa»? Estávamos num período em que o espírito de Prometeu não tinha ainda desertado as esquerdas.

No fundo, e como alguma história crítica da economia política europeia tem indicado, a integração acabou por cumprir cabalmente uma das suas funções no quadro da Guerra Fria e da afirmação do conservadorismo europeu de matriz económica liberal, de que o ordoliberalismo alemão do pós-guerra foi e é o principal componente (demorou, mas cumpriu): garantir a anulação dos socialismos, de todos eles, atenuando fortemente os efeitos socioeconómicos de uma democracia forte. Esta foi uma anulação progressivamente tão intensa que, mais um paradoxo, já muitos à esquerda o deixaram de notar, até porque, na lógica das preferências políticas endógenas, muitos socialistas aderiram aos termos das ideologias que moldaram as instituições europeias [6]. Isto é um grave problema e tem efeitos em boa parte do resto da esquerda, a que se proclama radical, mas que vincula o seu alardeado internacionalismo a uma integração que não pode deixar de ser neoliberal: basta pensar onde estavam ontem e onde estão hoje os defensores dos tais Planos Marshall e de outras fantasias supranacionais do presente e desgraçado contexto. Entre as fantasias novas está a ideia de que o controlo de capitais pode ser feito numa escala supranacional, quando, à luz da experiência histórica, esta pode, quanto muito, ajudar à sua efectivação na escala nacional.

Finalizamos com respostas breves a duas breves perguntas: de que é que a esquerda tem medo e como é que volta a meter medo? Alguma esquerda, a que ainda domina, tem medo das lutas de classes e de nelas se inscrever. E como é que volta a meter medo? Precisamente quando se inscrever nos terrenos onde pôde sempre crescer, dando corpo, em simultâneo, às aspirações das nações oprimidas e dos grupos explorados. Hoje, na Europa, a começar nos países do Sul, porque são o elo mais fraco da cadeia, isto impõe colocar na primeira ordem do dia a ruptura com a União Económica e Monetária, o mais ameaçador dispositivo para tudo o que se conquistou quando houve uma vontade geral nacional-popular, uma revolução democrática e nacional, que metia medo…

[1] David Priestland, A Bandeira Vermelha – História do Comunismo, Texto Editores, Alfragide, 2013, pp. 678-679.
[2] Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Presença, Lisboa, 1996.
[3] Domenico Losurdo, La Lucha de Clases – Una historia política y filosófica, El Viejo Topo, Madrid, 2013.
[4] Ambrose Evans-Pritchard, «Germany faces impossible choice as Greek austerity revolt spreads», 11 de Fevereiro, em http://www.telegraph.co.uk/finance/economics/11407256/Germany-faces-impossible-choice-as-Greek-austerity-revolt-spreads.html.
[5] Ver Barry Eichengreen, Hall of Mirrors: The Great Depression, the Great Recession and the Uses – and Misuses – of History, Oxford University Press, Oxford, 2015.
[6] Ver Bernard H. Moss, Monetary Union in Crisis: The European Union as a Neo-liberal construction, Palgrave MacMiIllan, Londres, 2004, de onde as duas citações, de Olof Palme e de Andreas Papandreou, foram retiradas.

 

Fonte: artigo publicado orixinalmente no Le Monde Diplomatique (edición portuguesa) de abril de 2015

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